Entender o luto durante a pandemia COVID-19

20-08-2021

Com as restrições colocadas de forma a conter a COVID-19, muitas despedidas de natureza cultural e religiosa foram impedidas. Além disso, o isolamento social imposto bloqueou o acesso dos enlutados às suas principais redes de apoio. Compreender o luto nunca se tornou tão premente e complexo, sendo urgente a criação de estruturas de apoio aos enlutados. A situação pandémica devida à doença provocada pelo coronavírus 2019 (COVID-19) trouxe várias mu- danças ao nosso dia-a-dia. Além do impacto social, emocional e económico que as medidas impostas para controlar a propagação do vírus tiveram, estas obrigaram-nos inevitavelmente a refletir sobre a forma como lidamos com a morte, tanto como sociedade como individualmente. A perda de alguém que é significativo representa um acontecimento de vida marcante e até mesmo transformador. Embora a morte esteja no futuro de todos nós, é um tema difícil e sobre o qual, normalmente preferimos não falar e nem sequer pensar. Protege- mo-nos desde cedo e protegemos as nossas crianças da dor da perda. E será isso correto? E quando alguém que amamos morre? Haverá perante a morte emoção mais saudável do que a tristeza? Existem muitas formas de se perceber a morte, mas ao referir o luto, inevitavelmente falamos em tristeza. No entanto, é importar destacar que o luto não é doença. Às vezes pode manifestar-se com sintomas emocionais (tristeza profunda, ansiedade, solidão), comportamentais (falta concentração, choro, sonhos com a pessoa que faleceu) ou físicos (falta de ar, dor de cabeça ou dores musculares)1,2

 O luto é uma reação emocional, espiritual, cognitiva e comportamental natural em resposta à morte de alguém que amamos3. Não é uma depressão. Não é uma perturbação de ansiedade. Não é um transtorno de stress pós-traumático. É luto. Várias teorias tentam explicar o luto, mas nenhuma consegue fazê-lo em pleno.4 Isto deve-se à singularidade da experiência de vivenciar o luto por cada um. É pessoal e individual, e cada qual vai vivenciá-lo considerando a civilização, cultura e religião em que se insere. Alguns autores descrevem o luto como uma sequência de fases, começando pela negação, depois a raiva, a negociação e por último, a depressão e aceitação.5 Contudo, não se podem estipular rigidamente regras ou horários por não se tratar de um processo linear. Na verdade, podem até existir retrocessos nestas etapas. Com muita frequência, as pessoas que passam por uma perda são menosprezadas porque o luto persiste por mais tempo do que os outros julgam razoável ou porque permanecem autocontidas e parecem não lamentar. Neste sentido, a maioria do apoio que é oferecido, nomeadamente por profissionais de saúde, adota uma postura errada, encorajando os enlutados a superar rapidamente a dor. Ora, não há forma de ultrapassar o luto sem permitir que a dor da perda seja sentida. Tentar encobri-la ou acelerar muito a sua superação, por exemplo com psicofármacos, poderá até contribuir para um adiamento do mesmo. Tratar o luto carece do tempo e disponibilidade para sentir emoções desagradáveis, tais como a tristeza ou a raiva. Acontece que, a maioria das pessoas não sabe lidar com a tristeza do outro, porque isso nos causa desconforto.

Afinal, oferecer conforto pode ser bastante desconfortável. Exige que nos sentemos com a dor de alguém e com os seus companheiros desajeitados: raiva lateral ou até mesmo direta e longos silêncios que tentamos preencher com as "palavras certas". Num espaço sem palavras certas, existem, algumas erradas. Sugerir que a perda é algo para "seguir em frente" rapidamente ou "superar". E há os "pelo menos", que transmitem a ideia que o enlutado deveria ser grato pela perda não ter sido pior. Quando as pessoas se sentem apoiadas no seu luto, quando o fardo é dividido, elas são mais capazes de manter conexões saudáveis com o mundo ao seu redor. Quando relegamos essas histórias para as sombras em nome de seguir em frente porque "poderia ter sido pior" ou porque já se passou um ano e alguém pediu "tempo" para a dor de outra pessoa, o resultado pode ser diferente e até deletério. Passou pouco mais de um ano desde a primeira morte confirmada por COVID-19, mas ainda longe do fim da pandemia. A pandemia alterou profundamente a vivência da morte. Apesar de não existirem dois lutos iguais, sabe que existem alguns fatores que podem influenciar a forma como este processo é vivido. Estes incluem o tipo de relação com o ente querido, a presença ou ausência de apoio, as próprias caraterísticas de personalidade do enlutado e ainda as circunstâncias em que se deu a morte. Neste sentido, admite-se mesmo que perdas inesperadas, como situações de acidente ou doença súbita, tendem a gerar processos de luto mais difíceis e dificuldades acrescidas à Saúde Psicológica. E perante o surgimento de uma pandemia a nível mundial, totalmente inesperada, como "ficam" os lutos na era COVID-19? Muitas pessoas morreram sozinhas, acompanhadas apenas por uma tela de visualização, ou no máximo, por um ou dois membros da família. Despedidas ficaram por fazer, e com elas, assuntos ficaram pendentes, palavras ficaram por dizer, emergindo um estado de grande angústia e culpabilização. Além disso, a impossibilidade de estar presente no funeral ou de não existir oportunidade de este ser realizado de acordo com as práticas mais tradicionais constituiu um fator disruptor acrescido para os elementos da família (ex. pela incapacidade de honrar os desejos do falecido ou ter os familiares e amigos significativos presentes). "Funerais por Zoom" não substituem abraços. A proibição da abertura do caixão, para lá dos restantes condicionalismos, é também uma circunstância que pode potenciar quadros de luto não evolutivo. Na maioria das sociedades as cerimónias fúnebres possuem uma função adaptativa muito importante. São rituais que permitem expressar a dor da perda e representam um momento de despedida. Referir ainda que, vivenciar o luto, somando o facto do isolamento já ter restringido a rede de apoio habitual, pode significar que a estruturação das emoções e processo de adaptação à perda será ainda mais dolorosa. A escala total da destruição provocada pela COVID-19 pode até fazer alguns sentir que as suas perdas e dor foram obscurecidas. Isto é, o fluxo constante de informações e atualizações com caraterísticas dramáticas pode fazer com que as pessoas não consigam reconhecer a dimensão da sua dor, desvalorizá-la e, consequentemente, não responder às suas próprias necessidades. O luto fica, assim, adiado. Numa época em que o número de mortes se soma, o luto precisa de ser reconhecido e validado. Não há cura até que o luto seja processado, e não pode ser processado até que seja reconhecido. A pandemia do luto vai durar mais que a pandemia da COVID-19 e os nossos recursos em saúde mental precisam de se pre- parar para isso. Teremos de ser proativos na construção de redes de suporte para apoiar o luto e encorajar as pessoas a cuidarem de si mesmas e a procurar ajuda numa era de trauma pós-pandémica. Acima de tudo, precisamos de abraçar urgentemente a empatia como um modo de vida e não como uma palavra da moda.Precisamos de construir uma sociedade que legitime, ao invés de minimizar e apagar, essa tristeza, cujas profundezas e consequências ainda não começámos a perceber. 


       Anabela Silva 

Médica Interna de Medicina Geral e Familiar






Referências: 

1. American Psychiatric Association. (2013). Diagnotistical manual of mental disorders (5th ed.).

2. Hensley PL, Clayton PJ. Bereavement: signs, symptoms, and course. Psychiatr Ann 2008;38:649-54. 3. Zisook S, Simon NM, Reynolds CF, Pies R, Lebowitz B, Young IT, et al. Bereavement, complicated grief, and DSM, part 2: Com- plicated grief. J Clin Psychiatry [Internet]. 2010 Aug [cited 2021 Apr 5];71(8):1097-8. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm. nih.gov/20797383/ 

3. Zisook S, Simon NM, Reynolds CF, Pies R, Lebowitz B, Young IT, et al. Bereavement, complicated grief, and DSM, part 2: Com- plicated grief. J Clin Psychiatry [Internet]. 2010 Aug [cited 2021 Apr 5];71(8):1097-8. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm. nih.gov/20797383/

4. Boerner K, Stroebe M, Schut H, Wortman CB. Theories of Grief and Bereavement. In: Encyclopedia of Geropsychology [In- ternet]. Springer Singapore; 2015 [cited 2021 Apr 5]. p. 1-10. Available from: https://link.springer.com/referenceworken- try/10.1007/978-981-287-080-3_133-1 5. Hamilton IJ. Out of hours understanding grief and bereave- ment [Internet]. Vol. 66, British Journal of General Practice. Ro- yal College of General Practitioners; 2016 [cited 2021 Apr 5]. p. 523. Available from: /pmc/articles/PMC5033290/

5. Hamilton IJ. Out of hours understanding grief and bereave- ment [Internet]. Vol. 66, British Journal of General Practice. Ro- yal College of General Practitioners; 2016 [cited 2021 Apr 5]. p. 523. Available from: /pmc/articles/PMC5033290/


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